NOTA DE SOLIDARIEDADE AOS PROFISSIONAIS DAS REDES DE EDUCAÇÃO BÁSICA

Desde o início da pandemia de CoVid-19, os profissionais da educação básica têm sido demandados em muitas frentes: levantamento da situação de estudantes, preparação de aulas remotas, adaptação ao uso de plataformas e recursos tecnológicos, reestruturação do processo avaliativo, apoio a dezenas (quando não centenas) de alunos sem condições para acompanhamento às aulas, tudo isso conciliado com o aumento dos desafios inerentes às atividades em home office (já que muitos sequer dispõem de um cômodo exclusivo para ministração de aulas, uma internet estável ou, enfim, têm com quem deixar crianças e idosos pelos quais são responsáveis enquanto estão diante das câmeras). Mesmo com tudo isso, os profissionais da educação vêm dando mostras diárias da seriedade de seus esforços profissionais – ainda que nenhum deles tenha recebido qualquer retribuição financeira pelos gastos extras que estão tendo com equipamentos, energia, cursos extras de formação continuada: e, pelo contrário, eventualmente vêm sendo ofendidos, como se estivessem vivenciando um período de descanso ou férias ou como se a suspensão das aulas tivesse sido uma decisão unilateral sua por preguiça.

Afora o que já foi mencionado, muitos gestores de escolas e de redes, no afã de “mostrar serviço”, foram tomados por um burocratismo sem outra justificativa que não o exercício do controle e do poder - o que fez crescer exponencialmente o número de documentos, formulários e relatórios a serem lidos, assimilados, produzidos e/ou preenchidos pelos profissionais da educação. E muitos profissionais, que estão em estágio probatório ou são empregados das redes privadas, receiam contestar os abusos nessa escalada burocrática. Paralelamente, os profissionais da educação, pela natureza de seu trabalho (que jamais prescinde das relações humanas em nível interpessoal), estão acolhendo casos de angústia, ansiedade, depressão e luto, que atravessam as vidas dos membros das comunidades escolares – o que acarreta um desgaste emocional e intelectual imenso no contexto de uma pandemia que, só no Brasil, com números subestimados, já ceifou mais de 140.000 vidas e já contaminou quase 4.500.000 pessoas.

No cotidiano de seu trabalho remoto, os professores têm que administrar, ainda, dezenas (quando não centenas) de situações de crianças e adolescentes com dificuldades de leitura e escrita, com dificuldades de acesso à internet, com equipamentos precários, sem acesso a bibliotecas, sem suporte presencial familiar em muitos casos – e assegurar, nessa situação, alguma continuidade do processo de ensino e aprendizagem. Considere-se, ainda, aqueles que têm algum tipo de deficiência ou que requerem qualquer suporte específico para acompanhar as aulas... A situação, para quem tem um pouco de lucidez e empatia, é dramática. Tudo isso permeado pela preocupação com o sabido crescimento do número de crianças e adolescentes em situação de violência doméstica, por parte daqueles que deveriam protegê-los: preocupação esta que jamais abandona os profissionais da educação, que, no cotidiano presencial das escolas, conseguem atentar a sinais e dar o encaminhamento necessário – mas que, na situação de ensino remoto, ficam mais distantes dos estudantes e, consequentemente, mais aflitos pela situação de fragilidade à qual muitos menores de idade estão expostos.

Agora, sob pressão de grupos com interesses nem sempre afinados à preservação da vida e do bem-estar de docentes e estudantes, o governo do estado do Espírito Santo, com anuência da Secretaria de Estado da Educação, autorizou o retorno às aulas presenciais – e muitas escolas e redes inclusive já convocaram os profissionais de volta às atividades in situ. Qualquer pessoa que tenha vivido o cotidiano de uma instituição escolar (ou seja: qualquer um que não saiba sobre educação escolar apenas aquilo que chega por meio de fontes bibiliográfico-documentais e relatórios, mas que compreenda como funciona o “chão da escola”) sabe que será impossível que protocolos sanitários impeçam a transmissão viral nesse contexto de pandemia.

Crianças e adolescentes não são máquinas programáveis, não mudarão por decreto, de um dia para o outro, uma cultura que se desenvolveu ao longo de séculos, de abraço, conversa, risada, empréstimo de materiais, partilha de lanches... Professores na educação infantil e nos anos iniciais mantêm uma relação próxima com estudantes (sendo necessário às vezes sentar ao lado para ajudar com uma tarefa e, eventualmente, oferecer um abraço numa situação de estresse ou choro). Crianças e adolescentes, entre eles e com os profissionais da escola (que incluem não apenas professores, mas também coordenadores, merendeiras, pedagogos, porteiros, secretários etc.), têm uma natureza gregária e que requer a proximidade. 

Adicionalmente, todo mundo que conhece a realidade das escolas sabe que, pela falta de investimentos bastantes, muitas vezes falta o básico: falta água, falta faxina na frequência adequada, falta papel higiênico, os bebedouros se entopem e vazam, as areias dos parquinhos nem sempre são desinfectadas a contento, as carteiras escolares com frequência estão riscadas e sujas, os ventiladores aparecem quebrados, não há pincel que funcione... Como alguém que vive no dia a dia essa realidade acreditará que haverá distanciamento social, desinfecção do ambiente 3 vezes ao dia, distribuição de máscaras de qualidade, disponibilidade de tapetes sanitizantes, de pias extras nos corredores com sabão líquido e toalha de papel, e, enfim, de álcool em gel em todas as salas? Não haverá. Talvez haja no primeiro dia, ou nas escolas-referência, mas para a maioria das pessoas e das instituições não haverá. Nós sabemos disso.

Diante desse quadro, é preocupante demais expor crianças e profissionais da educação – que, afora as interações escolares, usarão transportes públicos lotados e precários – aos riscos de contaminação. A afirmação de que “se houver crescimento do número de infectados e óbitos haverá nova suspensão das aulas presenciais” é declarar que “pagaremos para ver”: mas a moeda, nesse caso, são vidas, são pessoas. São nossos amores, nossos amigos, nossos parentes, nossos colegas de trabalho, nossos filhos que estão ameaçados.

Embora seja sabido que muitas pessoas estão voltando a frequentar os bares, o comércio, os locais de culto religioso, essa decisão está na esfera individual – mas a educação escolar na modalidade presencial é uma política pública e que aumenta substancialmente os riscos de contágio e, consequentemente, de adoecimento e morte por CoVid-19. Mesmo que se diga que os pais “poderão escolher” se vão ou não mandar seus filhos, isso é perverso em muitos níveis, pois: a) delega aos indivíduos a decisão (e, consequentemente, a assunção dos riscos) que deveria ser dos agentes públicos que têm as condições objetivas de tomar decisões cientificamente embasadas; b) expõe os profissionais da educação a serem agentes de transmissão do vírus para seus filhos (ainda que decidam, por exemplo, não enviar seus filhos à escola); e c) obriga os trabalhadores que, no momento, estão em home office para cuidar dos filhos, ao retorno imediato ao trabalho presencial: o que amplia ainda mais o espectro de pessoas circulando, e, portanto, o rol de pessoas suscetíveis ao contágio.

Face a isso tudo, manifestamos nosso repúdio à autorização para retorno às aulas presenciais no estado do Espírito Santo antes da descoberta da vacina ou antes do decréscimo substancial dos óbitos e do número de novos infectados, e manifestamos total e irrestrita solidariedade aos profissionais da educação básica. Conclamamos a sociedade organizada a encampar a luta dos educadores e educadoras pela preservação e defesa da vida, acima do produtivismo e do lucro, acima da arrogância de quem julga compreender a educação escolar mas não entendeu nem a lição mais fundamental: a dignidade humana antecede qualquer planilha, a qualquer interesse político ou eleitoral, qualquer argumento que não tome como norte principal a defesa intransigente da vida em sua máxima possibilidade.

 

Ana Carolina Galvão

Professora e doutora em Educação

Coordenadora do grupo de pesquisa “Pedagogia Histórico-Crítica e Educação Escolar”

 

Maria Amélia Dalvi

Professora e doutora em Educação

Coordenadora do grupo de pesquisa “Literatura e Educação”

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